27/10/2020 às 18h16min - Atualizada em 27/10/2020 às 18h16min

EDUCAÇÃO FRANKENSTEIN

Se pudermos reconstruir a educação permitindo-nos ver o todo em lugar de partes podemos ter um objetivo único e conciso e assim nos tornarmos educadores no sentido mais pleno da palavra.

Você já parou para pensar que é possível fazer um paralelo entre educação e a obra Frankenstein, escrita por Mary Shelley? Neste momento você pode ter parado para refletir o que seria uma “educação Frankenstein”, como sugere o título... ora, é exatamente o que temos para hoje!

O Frankenstein é bastante conhecido, aparece em desenhos, filmes, livros e até mesmo em diversas obras dos mais variados tipos, como personagem principal ou coadjuvante. Se tornou um ícone e podemos imaginá-lo como uma criatura de aparência feiosa, uma vez que é feito de partes de matéria inanimada (cadáveres, literalmente) escolhidos a dedo por seu criador: Victor Frankenstein.

Mas vamos ao que interessa. Assim como Frankenstein, a criatura, é constituído por várias partes de pessoas diferentes, assim o é a educação. Temos pedacinhos para escolher à vontade, alguns mais famosos como Montessori e Piaget e outros um pouco menos como Bruner e Luria. E os pedacinhos não param por aí! Em pedacinhos também colocamos o conhecimento: temos no cardápio português, matemática, história, geografia, ciências, inglês, música... pode variar.

Muitos não sabem, mas Mary Shelley criou sua obra-prima, este romance esplêndido, durante um concurso entre amigos, em uma noite tenebrosa. O objetivo era criar um conto apavorante. Com base nas suas vivências e estudos, ela juntou a questão da morte com estudos de corrente elétrica de Benjamin Franklin e animação de matéria inanimada de Erasmus Darwin (avô de Charles Darwin) e imaginou se não seria possível recriar a vida a partir de partes inanimadas de pessoas, por meio da eletricidade. O título original foi Frankenstein, o Prometeu Moderno, em homenagem a uma das histórias favoritas da moça: Prometeu, lógico.

A educação acha aqui outra similaridade com Frankenstein, pois vive eternamente em um concurso de inovações. Temos soluções das mais variadas para a educação e a cada dia surgem novas engenhocas que prometem dar conta do que supostamente a sociedade não consegue, num todo: educar para o futuro. Temos soluções para problemas emocionais, para inserção na robótica, para uso de ferramentas online, para expressão... um concorrendo com o outro para provar qual será mais benéfico naquela comunidade escolar.

Mary Shelley, entre os quatro participantes do concurso, percebeu algo importante e por isso é lembrada até hoje. Ela notou que poderia reconstruir um humano usando as inovações da sua época, mas queria provar que o mais importante seria o que fazer depois, qual caminho seguir com o que foi recriado. O concurso em si se tornou irrelevante.

Irrelevante é também o concurso e desfile de soluções que temos. O mais importante não é o que oferecemos por fora. É exatamente o que Mary Shelley quis que seu leitor percebesse. É isso que nós, educadores e sociedade, devemos perceber. O processo de transformação da educação acontece de dentro para fora. De nada adianta oferecer os estímulos se não há espaço para ele dentro do aluno. Ele precisa entender, se envolver com o que é ensinado.

O livro de Mary é extremamente tocante. Cruel é o criador, Victor, e não a criatura, Frankenstein, que nem nome tem, ficando assim com o sobrenome de seu criador. Victor escolhe com esmero as mais belas peças inanimadas que consegue e fica por dois anos trabalhando com afinco, objetivando trazer sua criatura à vida. Quando o faz e ele abre os olhos, são amarelados e Victor se sente frustrado. Ele deixa de enxergar a beleza da vida e começa a enxergar novamente os detalhes.

Quando a educação traz propostas, muitas vezes também tem boas intenções, mas elas se perdem no caminho, assim como aconteceu com Victor. Em lugar de olhar o aluno como um todo, o sistema nos faz olhar os defeitos, exatamente como Victor fez. Não foi o fato de ter trazido algo morto à vida que chamou-lhe a atenção, mas os defeitos que sua criatura apresentava. Ele o queria perfeito.

Nossos alunos possuem talentos, que nem sempre são cultivados na escola. Um aluno com excelente destreza motora, que possui dificuldades de cálculo, terá anotado em sua ficha ou relatório escolar que tem dificuldades com matemática, porém não virá a anotação de que poderá ser um excelente arquiteto ou engenheiro se estimulado a usar a destreza motora com o apoio matemático, percebendo assim uma função como suporte da outra. Um aluno com olhar aguçado para os detalhes que não consegue usar sua imaginação em uma produção de texto porque acaba sendo metódico não terá em sua anotação de relatório que pode ser um excelente redator se for ensinado a ter liberdade cerebral e criar de maneira diferente por modelos de criatividade.

Nossa educação é formada por pedacinhos e temos tendência não apenas a olhar para os pedacinhos em lugar de considerar o todo. Ela é um conjunto de teorias, técnicas, metodologias, ferramentas, tecnologias, professores que passam por nossas vidas e devemos nós, as criaturas dessa educação, juntar os pedacinhos. Não nos é ensinado a cultivar nossos talentos e usá-los em prol daquilo que temos dificuldade. A criatura de Shelley era extremamente culta e afetiva, lhe faltava o carinho e a aceitação de seu mestre. Nosso aluno vem para a escola aberto às experiências, deixando acessível a nós, educadores, seu cérebro, suas aprendizagens, para que possamos dar nosso melhor e ajudá-lo a trilhar sua vida em sociedade. O que lhe falta é que seja considerado como o todo, com qualidades e defeitos, com sentimentos e metas, com sonhos e frustrações. Não devemos idealizar o aluno, devemos enxergar o real e fazer o possível para que ele se desenvolva.

Perceber do que uma criança é capaz é como abrir uma nova porta para o futuro, uma nova possibilidade. É permitir a reconstrução da educação, porque é assim que podemos avançar, saindo de uma educação Frankenstein para uma educação plena. Devemos buscar o crescimento constante para o mestre e para o aluno, participar ativamente de seu desenvolvimento.

Se assim fosse, Victor teria conseguido que seu suposto “monstro” tivesse se tornado uma obra humana, porque ele já o era internamente, apenas seu criador é que não percebia, não aceitava. Se pudermos reconstruir a educação permitindo-nos ver o todo em lugar de partes podemos ter um objetivo único e conciso e assim nos tornarmos educadores no sentido mais pleno da palavra.

Janaina Spolidorio e Carol Cardenas - adaptado do podcast literário-pedagógico da obra Frankenstein, de Mary Shelley.


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