19/11/2019 às 19h56min - Atualizada em 19/11/2019 às 19h56min

A Constituição não pode ser desrespeitada para promover suposto combate à corrupção

Se o cumprimento da Constituição significar a anulação de processos contra este ou aquele, que assim seja. É preciso seguir a lei para fazer Justiça. Vivemos em uma democracia e os fins não podem justificar os meios.

O que garante a democracia em um país é o respeito aos direitos básicos, como o da ampla defesa, do sigilo e da livre manifestação de pensamento, só para citar alguns. No caso do Brasil, esses direitos são assegurados pela Constituição Federal, que tem no Supremo Tribunal Federal (STF) o seu guardião. Ele é a instância responsável por garantir que os poderes respeitem os princípios constitucionais que garantem o estado democrático de direito.

Na próxima quarta-feira, o STF terá mais uma oportunidade para fazer valer o respeito à Constituição: o julgamento da suspensão das investigações que utilizaram dados do antigo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), hoje Unidade de Inteligência Financeira (UIF), sem autorização judicial.

Nos últimos anos, assistimos a uma série de abusos cometidos por órgãos de investigação, como as polícias Civil e Federal e o Ministério Público, em nome de um combate à corrupção. Ávidos por dar uma resposta à sociedade, que explodiu em protestos contra os casos de corrupção no Brasil desde 2013, policiais e promotores vêm desrespeitando o Artigo 5º, Incisos X e XII, que garante o direito de todo cidadão ter seus dados telegráficos, de correspondência, incluindo os bancários, em sigilo.

O direito constitucional ao sigilo não significa que esses dados não possam ser acessados por órgãos de investigação. Para isso, é preciso que se respeite o processo legal e se solicite à Justiça o acesso a essas informações em casos nos quais o alvo esteja sob investigação. Caberá ao juiz avaliar se os dados são imprescindíveis para o andamento das investigações ou para configurar a materialização de um crime.

Até pouco tempo atrás, promotores e delegados estavam solicitando, sem autorização judicial, relatórios bancários de alvos que nem sequer estavam sendo investigados. E isso é um caso flagrante de abuso de autoridade.

A Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998) estabelece que a UIF tem a função de monitorar todas as transações bancárias do país e que, quando concluir que houve crime nessas movimentações, pode pedir ao MP e à polícia que instaurem investigações.

O sistema brasileiro de leis tem mecanismos de garantir a fiscalização dessas movimentações financeiras, e descobrir crimes, sem desrespeitar a Constituição. Cai por terra, portanto, o argumento de que a obediência à Constituição inviabilizaria investigações de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.

Esse princípio das garantias fundamentais, que dá sigilo aos dados bancários, foi reiteradamente descumprido pelo Ministério Público. Agora, diante da celeuma instalada sobre o assunto, o próprio MP evoca a Constituição para afirmar que o ministro Dias Toffoli comete ilegalidade ao requisitar ao Banco Central o envio de 600 mil movimentações acessadas por órgãos de investigação sem autorização judicial.

Diferentemente do que afirma o Ministério Público, o que o ministro requereu ao antigo COAF e ao BC foi um relatório de atividades, não a quebra de sigilo. Isso ficou muito claro quando o procurador-geral da república, Augusto Aras, afirmou que não houve pedido de quebra eletrônica do cadastro para verificação dos dados bancários e financeiros. O que foi solicitado foi um relatório no qual deverá constar quem está pedindo a quebra do sigilo, para quem está sendo pedido e em razão do que está sendo pedido. E, no final das contas, Toffoli acabou abrindo mão de usar o relatório.

Se o cumprimento da Constituição significar a anulação de processos contra este ou aquele, que assim seja. É preciso seguir a lei para fazer Justiça. Vivemos em uma democracia e os fins não podem justificar os meios.

Jacqueline Valles é jurista, advogada, mestre em Direito Penal, especializada em Processo Penal e Criminologia, professora universitária e sócia-diretora da Valles e Valles.


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