28/06/2020 às 12h03min - Atualizada em 28/06/2020 às 12h03min

“O Irlandês” e nós

Se quisermos saber em que Brasil vivemos, temos de olhar para as transformações que este filme conta para alguns e relembra para outros.

Para um filósofo como eu, O Irlandês de Martin Scorsese (The Irishman, Estados Unidos, 2019) é menos um filme sobre a Máfia e sobre dramas pessoais do que um guia sobre a democracia na América. Um quase manual. Se quisermos entender a América, temos de prestar atenção nesse épico. Mas não só! Se quisermos saber em que Brasil vivemos, temos de olhar para as transformações que este filme conta para alguns e relembra para outros.

Ao final do filme, a tela mostra uma cena que constata que as novas gerações, mesmo se fizeram o ensino médio ou superior, não conhecem o grande líder sindical Jimmy Hoffa, desaparecido em 1975. Como nós brasileiros, os americanos, apesar de uma educação melhor, guardam pouco do passado não muito distante, dos tempos de um capitalismo que os economistas qualificam como “os trinta anos dourados”. Sinal dos tempos esse esquecimento.

A produção de Scorcese traz Hoffa interpretado por Al Pacino e o irlandês interpretado por Robert de Niro. Segue junto deles um time de feras - atores e atrizes da elite de Hollywood. Só mesmos estes homens estariam a altura do que Scorsese queriam mostrar - e mostrou.

Jimmy Hoffa representou o sindicalismo americano anticomunista, adaptado ao New Deal e ao American Way of Life. Ele viveu e ajudou a construir tudo o que foi gerado em um tempo em que uma parte dos trabalhadores menos qualificados do mundo todo, em especial na América, acreditaram que se podia contornar o capitalismo segundo uma atenuação da luta de classes. De fato, nos “trinta anos dourados”, o capitalismo distribuiu não só renda, mas também riqueza. Nos Estados Unidos, saiu-se da condição vivida até 1920, de alta concentração de renda, para uma situação que a propaganda dizia - e não de todo errada - que era a de fazer todo soviético (e comunistas em geral) nunca desejar outra coisa senão vir para o Ocidente. Os ricos continuaram a ficar ricos e mandar na política, mas, ao mesmo tempo, também os sindicatos se fortaleceram assustadoramente. Os sindicatos também ficaram ricos. Todavia, os negócios sindicais adiantaram uma parte da história que viria. As Unions geraram fundos de pensões com milhares de contribuições, e estes foram direto para o campo da capitalismo financeiro. Um prenúncio do que seria viver no capitalismo posterior, o nosso capitalismo de hoje. Após os anos setenta, quando Nixon tirou o lastro do dólar, dando início a tudo que hoje conhecemos como capitalismo financeirizado, a subjetividade pode ser completamente transformada segundo a doutrina do neoliberalismo.

Mas, enquanto esse mundo atual não chegava, Hoffa imperou como herói dos trabalhadores, em particular dos caminhoneiros, e foi talvez o caso mais significativo de ligação entre a máfia ítalo-americana e o sindicalismo reformista.

O filme é baseado no livro do advogado Charles Brandt, I Heard You Paint Houses (2004), em que há o relato de Frank “The Irishman” Sheeran, também sindicalista e amigo de Hoffa, em que este assume o assassinato do grande líder sindical. Se há verdade nesse relato, muito provavelmente nunca iremos saber. A verdade, no entanto, é a de que durante anos todas as eleições sindicais foram controladas pela máfia, e pior: todas as eleições americanas para presidentes e outras tiveram grosso dinheiro mafioso, e em alguns momentos, dinheiro decisivo. A máfia tinha controle sobre o próprio Hoffa, e se gabava de poder ter sido um fator decisivo na eleição de Kennedy ao mesmo tempo que havia depositado dinheiro para seu concorrente, Richard Nixon.

Nesse caso, há um momento do filme que poderia ser mais explorado: a morte de Robert Kennedy. Os mafiosos ficaram doidos quando este irmão de John inventou de fazer uma investigação rigorosa sobre a ligação entre os líderes sindicais e o crime organizado, em especial sobre a figura de Hoffa. As investigações terminaram por jogar Hoffa e outros na cadeia. Quando Hoffa saiu e tentou recuperar o comando do que ele dizia ser “my Union“, nada mais deu certo. Mas as coisas não iriam mesmo dar certo! O modo de vida daqueles tempos do pós-Guerra havia se encerrado. Reagan iria chegar logo e, junto com Thatcher na Inglaterra, dariam ao mundo os instrumentos ideológicos, tirado da escola dos Chicago Boys, capazes de fazer a subjetividade de hoje ser o que ela é. Todos nós hoje temos o futuro traçado e comandado pelas nossas dívidas, pelo cartão de crédito, pelo crédito consignado e, enfim, pelo consumo de hoje que nos diz que tudo será possível de ser pago amanhã.

O controle do eu sobre si mesmo, que nos definiu outrora como sujeitos, é hoje o controle de nossas dívidas sobre nós mesmos. Se acreditamos que somos sujeitos, é porque a doutrina neoliberal reconceituou esse controle sobre si através da criação de mitos: hoje em dia há por aí uma identidade que todos podem vestir: a do homem que se controla porque ele explora a si mesmo, o empresário de si mesmo - o homem empresa.

Quando Ciro Gomes surgiu na campanha presidencial de 2018 dizendo que ele podia cancelar a dívida de milhares de brasileiros, ele estava correto. Mas, talvez ele próprio não estivesse atento para um fato inexorável: ele não conseguiria, com isso, alterar em nada a subjetividade do homem trabalhador atual. No dia seguinte, após não termos mais dívidas, uma vez agraciados com a ideia e prática de Ciro, estaríamos novamente endividados, mesmo que os juros viessem a ficar mais baixos.

Ser um endividado é nossa condição humana atual. É algo maior do que a engenharia social e política de governos podem combater. Na América como aqui no Brasil, a vida capitalista não permite mais sonharmos com regras para o capital, a não ser que toda uma correlação de forças no contexto da luta de classes possa ser alterada. Nada indica que o coronavírus vá trazer, com a sua urgência pela participação do estado na economia, uma mudança de subjetividade que leve de roldão esta que impera hoje, moldada pelo neoliberalismo.

Os americanos não se lembram de Hoffa e nós não nos lembramos mais da existência da CUT, pois cada trabalhador atomizado não tem mais fábrica, sindicato ou coisa parecida, tem apenas na cabeça a ideia de que recebeu um crédito e agora é empresário de si mesmo ou, no âmbito sócio-cultural, o usuário das plataformas narcísicas de Internet. Cursos para tal não faltam. Um “curso de empreendedorismo” e eis que você vira um … ser humano! Quando não isto, então se instaura um devaneio ainda maior: podemos ser investidores. Afinal, no Brasil, agora a esquerda também tem educadores financeiros! Quem são eles? Gente que, com Ciro Gomes e com o PT, nos ensina a viver em um mundo em que o dinheiro gera dinheiro sem precisar da intermediação da mercadoria. Nesse mundo, Hoffa dos anos cinquenta e sessenta, e Lula dos anos setenta e oitenta, são figuras completamente extemporâneas.

O filme de Scorsese nos faz viver que o presente, a vigência do neoliberalismo, ao menos em ideia, vai ter de passar como os “trinta anos dourados” também passaram, e vamos ter de produzir uma nova subjetividade. A vigente não é boa!

Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo.


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