04/04/2020 às 18h47min - Atualizada em 04/04/2020 às 18h47min

Capitão Corona é o desaparecimento da fronteira entre biologia e política

Afinal, Bolsonaro quer o enfraquecimento do estado e da república, e o vírus também assim faz, de modo que podemos dizer há aí uma fusão, a criação do Capitão Corona (Stan Lee adoraria). Esse homem-vírus tem desejos políticos: o caos em proveito de uma sociedade com a república esgarçada, em que irão prevalecer a força das milícias, das igrejas evangélicas e das famílias armadas (as que fizeram as recentes carreatas).

O positivismo separou biologia e política. A tentativa depois, ainda dentro do positivismo, foi a de unir ambos a partir de justaposição. Nesse caso, surgiram aqueles que falaram que era necessário ver os “aspectos sociais” dos objetos tipicamente estudados por biólogos. As infecções teriam, então, de serem vistas não só pelo saber médico, mas também pela sociologia. Médicos e sociólogos trabalhariam em comum. Tem aqueles que acham que estão avançados por defenderem esse tipo de abordagem. Multidisciplinaridade e interdisciplinaridades são sempre duas grandes bobagens para resolver a bobagem maior do positivismo tosco.

Ora, filósofos como Foucault, Agamben, Sloterdijk e Roberto Espósito nos ensinam a ver as coisas pela ótica da biopolítica. Esse termo conceitual tem uma história. Cada um desses pensadores deu sua contribuição para tal história. O núcleo do conceito, no entanto, pode ser assim posto: o poder na modernidade lida com a vida, a vida tida como sobrevivência, e a vida - o próprio corpo - modifica todo o poder. O termo arrebenta de vez as fronteiras que o corpo, na visão tradicional, obteria ao ser tomado como “biológico com aspectos sociais”. Outros termos, que tratei em outros lugares, como “antropotécnicas” (Sloterdijk) e “imunidades” (Roberto Espósito), “corpo nu” (Agamben) fazem o mesmo.

Esses pensadores, cada um a seu modo, nos mostram que não há biologia de um lado e política de outro. Vejamos o coronavírus. Ele vem reformulando a noção de corpo. Não sabemos mais quando começa e quanto termina um corpo. A fronteira chamada pele nada mais diz. Um corpo começa a três metros ou a um metro da pele de outro indivíduo? Nenhum saber médico pode dizer isso. Um corpo é um corpo vazio, que pode ser assumido por qualquer forma, a partir de uma interação obrigada a ser eternamente virtual? Nesse caso, podemos ainda falar em corpo? E o poder político, se exercido pelo corpo com tantas novas fronteiras e silhuetas (ou nenhuma) está se defrontando com o que, afinal? Ele próprio, poder, não terá de tocar o novo corpo com novo aparato jurídico? Toda a pergunta pela nova silhueta é uma pergunta também sobre o que é ou não da ordem do saber médico e da política ou do direito – e ninguém mais sabe onde estão essas fronteiras.

Quantos corpos possui alguém que, uma vez jamais tendo saído da quarentena, desde sua maioridade (dezenas de pessoas ficam maiores agora e irão viver sua maioridade na quarentena por anos?), ocupa diversos perfis na Internet? O que vale? Seu endereço físico, a casa, definirá seu corpo e… sua pessoa? Ora, então, seu corpo é a geografia da sua casa, não mais o envólucro da pele? E sua condição de sujeito de direitos e deveres: é o que? Qual perfil? Juízes, médicos, biológicos (Ah! Átila, você nunca vai entender) e políticos tradicionais não sabem mais responder a tais perguntas.

Ninguém pode afirmar que a pandemia vigente vai durar pouco ou muito, ou se será eterna. Novos lugares na China estão sendo fechados. Será novo campo de epidemia, agora gerado a partir dos que vieram para a China, com poder de reinfecção? E os poderes mutacionais viróticos foram determinados? Ora, talvez nunca poderão ser determinados de modo bem delineado! Então, poder-corpo ou corpo-poder ganhará capítulos interessantes, com ineditismos fantásticos, a partir ainda deste ano. O corpo biológico terá desaparecido completamente diante do corpo como imagem e coisa social. E vice-versa. O corpo não será mais o objeto básico do saber médico, pois o próprio saber médico, se baseado na biologia, não fará mais sentido. A biologia morrerá, se é que já não morreu.

A situação do Brasil hoje faz surgir, então, uma nova área narrativa. Nós teremos que apelar para narrativas fantásticas se quisermos falar de corpo. O caso do Bolsonaro é típico. Ele circula por todo lugar, passeia corporalmente, sem medo do coronavírus. Estará ele imunizado? Bem, tudo parece que sim. Mas, não seria necessário, agora, imaginar que ele responde ao vírus como quem traça uma simbiose com o novo organismo? Afinal, Bolsonaro quer o enfraquecimento do estado e da república, e o vírus também assim faz, de modo que podemos dizer há aí uma fusão, a criação do Capitão Corona (Stan Lee adoraria). Esse homem-vírus tem desejos políticos: o caos em proveito de uma sociedade com a república esgarçada, em que irão prevalecer a força das milícias, das igrejas evangélicas e das famílias armadas (as que fizeram as recentes carreatas). Tudo isso estará sob o domínio de grandes conglomerados de produção e de finanças. Uma sociedade assim, parecida com o morro do Rio de Janeiro, pode compor a maior parte do Brasil. Bolsonaro seria o rei não-governante de tal sociedade. Mas quem seria ele se não o Corona Vírus? Um rei que preside sem governar. Ele adoraria, já que é bem vagabundo em termos administrativos, preferindo sempre só o embate verbal.

Bolsonaro é, hoje, uma fusão entre o vírus e o homem. Suas vontades se coadunam. Onde começa o político Bolsonaro e onde termina o vírus que o infectou? Ninguém sabe. Estão funcionando como uma só entidade. Bolsonaro é, segundo essa minha narrativa fantástica, a peça viva do biopoder. Nele, biologia e política não mais existem senão como completamente fundidas. O resultado disso é o plano para uma coisa que chamo de anarcocapitalismo. Uma sociedade que não seria mais sociedade, uma quase anomia.

Paulo Ghiraldelli, 62, filósofo. Autor entre outros de A Filosofia explica Bolsonaro (Editora Leya, 2019).


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